Leonardo da Vinci: perversão ou sublimação?
Leonardo
da Vinci não é só admirado como, também, um enigma: de onde viria
tamanha genialidade, expressa pela sua infinita curiosidade
intelectual e talento artístico?
Partindo das obras de Freud e de
Lacan, as elaborações de Fleig (2008) e de McDougall (1983) a
respeito do desejo e da criação podem ajudar a esclarecer a
natureza dos processos que tornaram possível a existência de tal
gênio.
Poderia-se dizer que a carga libidinal sublimada que
encontramos na produção cultural de Leonardo é aquela mesma do
destino pulsional sublimado de um sujeito perverso? Em outras
palavras: trata-se de um sujeito perverso ou de um neurótico que foi
capaz de sublimar em alguns momentos da vida? Movido pela pulsão, o
desejo humano é desnaturado. Sabemos que a falta instaura-o,
deixando o ser falante à deriva. Mas esse desejo é sempre desvio de
uma norma?
Não,
pois como fundamento da sexualidade, faz parte dela. Então, se todos
guardamos a mesma disposição polimorfa ligada à sexualidade
infantil, o que seria perversão? Freud (1927) a definiu como a
clivagem no sujeito que, confrontado com a diferença sexual,
renega-a, fazendo coexistirem duas realidades: uma que reconhece essa
diferença, e outra que a rejeita. Diante do horror da castração, o
desejo toma como objeto ideal o inanimado.
Por isso, o sujeito
estruturado como perverso têm de negar o estatuto de ser vivo do
semelhante, procurando instrumentalizá-lo, apagar sua alteridade a
fim de preencher um vazio no cerne da própria subjetividade. Ou
então, transformar-se nesse ele mesmo nesse objeto, oferecendo-se
então como falo imaginário. Práticas sexuais tidas como
‘desviantes’ (a homossexualidade, o fetichismo, o exibicionismo,
o voyeurismo e algumas outras) estão envolvidas nessa tentativa do
sujeito de conter a angústia e de manter sua estabilidade psíquica
fragilizada em função de uma falha em sua estruturação edipiana,
marcada pelas imagos de uma mãe onipotente e invasora e de um pai
insuficiente. Leonardo era um homem bonito fisicamente, amável e
encantador. Apreciava o belo e as coisas refinadas.
Também gostava
de garotos bonitos. Aliás, parecia escolher seus pupilos pela
beleza, e não pelo talento. Entretanto, não mantinha relações
sexuais com eles. O amor reprimido por sua mãe biológica, a
camponesa Caterina, de quem Leonardo foi afastado em tenra idade para
ir viver na casa de seu pai, levou-o a identificar-se com ela. A
partir daí, o modelo de seus objetos de desejo passou a ser
narcísico, calcado em sua própria imagem.
Assim, fugindo da atração
exercida pelas outras mulheres, conseguia manter afastada a ameaça
de uma traição desse amor supremo de sua primeira infância,
surgido do excesso pulsional advindo dos beijos e carinhos entre uma
jovem mãe solteira e seu filhinho. Excesso que foi a fonte de sua
imensa vontade de saber.
Criação
científica e criação artística podem ambas ser consideradas
manifestações sublimatórias? Sim. Entretanto, vejamos por quê o
cientista acabou em muitos momentos sufocando o artista, de acordo
com a patografia* feita por Freud em 1910. A busca pelo saber desse
grande homem não era diferente da de um neurótico obsessivo. Nesta
neurose, o desejo é sujeira. A angústia advinda desse desejar pode
vir em forma de inibição, pois a realização do desejo, sempre
perverso já que guarda a chave de um gozo que é interpretado pelo
neurótico como proibido, pode ser trágica para o sujeito.
Ainda a
respeito disso, Nasio (1989) lembra que a pulsão nunca consegue
realizar a descarga direta e total pois o eu, temendo ser esmagado
pelo desejo, levanta barreiras defensivas: o recalcamento leva ao
sintoma neurótico, a fantasia leva à identificação do eu com o
objeto do desejo, a inibição transforma o desejo no afeto de
ternura e a sublimação desvia a satisfação sexual pura e simples
para fins socialmente elevados, ligados à produção artística,
científica ou mesmo esportiva.
Todas essas barreiras exerceram um
papel na obra de Leonardo. Sua produção artística floresceu
vigorosamente na juventude, mas veio a sofrer uma inibição quando
este encontrou seu mecenas Ludovico Sforza, no que pareceu uma
regressão (repressão?) diante dessa figura de pai substituto.
Assim, lentamente, o que passou a predominar foi sua produção de
saber científico. Inicialmente, o objeto dessas pesquisas naturais
era o aprimoramento de sua arte, mas o pesquisador acabou por
sobrepujar o artista, num movimento que fez de Leonardo um homem de
seu tempo. Ele foi um artista e um cientista, algo característico do
Renascimento. Época em que o homem lutava contra a emergência da
lascívia com a busca por um ‘saber elevado’ representado
justamente por esse saber científico.
Nessa época, a civilização
ocidental passava de um mundo de sombras marcado por uma
religiosidade repressora da sexualidade para um mundo de luzes
marcado pelo desenvolvimento científico e tecnológico. Mas, próximo
aos cinqüenta anos, época em que a libido masculina costuma sofrer
um surto, como observou Freud, sua produção artística ganharia um
novo fôlego, fazendo-o relembrar-se do sorriso sedutor da mãe.
Assim, um novo movimento regressivo levou-o de volta à pintura,
dessa vez da forma mais sublime. Foi ai que ele produziu a Mona
Lisa, a Sant’Ana com Dois Outros e também os retratos com os
famosos sorrisos enigmáticos que marcaram sua obra pictórica.
Leonardo
nem sempre dava suas pinturas como completamente prontas, buscando
uma perfeição tipicamente obsessiva em toda a sua minúcia e
preocupação com o detalhe. Meticuloso, levou quatro anos produzindo
a mais assombrosa e magnífica obra de arte que a civilização
ocidental já conheceu, a Mona Lisa, obra que jamais deu por acabada.
Através dela, ele conseguiu uma proeza espantosa: capturar o sorriso
sereno, misterioso e sensual da única mulher que pôde amar,
Caterina. Leonardo foi afastado dela aos três ou quatro anos para ir
viver na casa paterna sob os cuidados também ternos e amorosos da
esposa de seu pai, Albiera, que não conseguia conceber. Além disso,
havia lá também a avó paterna a lhe dedicar ainda mais amor
maternal. Por outro lado, seu pai foi para ele uma figura ausente.
Assim, a fria rejeição à sexualidade desse exímio retratador da
beleza feminina era, na realidade, o produto de um amor sem limites.
Sublimando, Leonardo conseguiu possuir aquilo que sempre quis.
Contornou seu desejo? Provocativamente, Fleig chama a capacidade de
sublimação de forma socialmente aceita de evitar as conseqüências
da castração. Ora, contornar a castração não é a mesma operação
que está em jogo na perversão?
A obra de Leonardo da Vinci
mostra-nos que é possível que as mesmas moções libidinais
não-recalcadas que levam à via da perversão, à experiência
radical da paixão humana que leva à divisão do sujeito, sejam
também capazes de constituir forças utilizáveis ao trabalho
criativo.
A
diferença entre essas duas situações estaria na ausência total ou
na presença parcial de recalcamento. McDougall distingue os atos que
resultam em obras de valor artístico ou intelectual das construções
típicas da atividade sexual do perverso atribuindo ao indivíduo
criador uma mobilidade psíquica própria, que se reflete numa
relação altamente erotizada para com tudo o que acontece à sua
volta. Relacionados à infinidade de outros elementos da vida
interior, objetos captados por uma afiada percepção tornam-se
fontes fecundas de produção, o que acontece mediante uma interação
bastante livre entre os processos primário e secundário. Assim,
esse sujeito torna-se alguém capaz de questionar o convencional.
O
talento em tecer relações entre elementos díspares permite-lhe a
ousadia de ser original. Através de suas criações, obtém uma
confirmação narcísica que é capaz de preencher vazios provocados
por um outro, reforçando assim seu estatuto de sujeito.
Outra
diferença apontada por McDougall entre o artista e o sujeito
perverso seria a presença no primeiro do prazer narcísico adicional
de oferecer sua obra à apreciação pública, de doar sua criação
esperando ansiosamente por reações de prazer, aceitação e
validação. Em suma, pela construção de um engajamento afetivo
entre o criador e os que apreciam sua obra.
Para a autora, as origens
dessa produção remontariam às vivências da fase anal, em que as
produções excrementícias dessa criança (o ‘artista’) tinham
como destinatário (seu ‘público’) a mãe, que é quem
primordialmente conferiria a essas criações a função significante
de objeto de troca. Mas estando também repleto de componentes
sádicos e agressivos, o prazer dessa produção carregaria o risco
de que a atividade criadora do sujeito fosse atrelada à culpa e à
angústia.
Portanto, se a maioria dos seres humanos não são, nem
criativos, nem perversos, é porque não assumiram as transgressões
inerentes ao prazer de “produção” nem a angústia que acompanha
essa autofecundação (McDougall, p. 81). Isso remete à questão da
dificuldade em produzir.
A tensão gerada nesse conflito seria um
obstáculo à produção da obra de arte? Sendo assim, poderíamos
dizer que a procrastinação de Leonardo em pintar seria também um
resultado dessa angústia inerente ao processo criativo, e não
apenas um traço obsessivo quanto à forma, uma busca da perfeição
absoluta. O enigma do sorriso da Gioconda continua a fascinar os que
o contemplam por um longo tempo, proporcionando ao expectador aquele
sentimento de estranheza descrito por Freud em 1919 (Unheimlich), que
Lacan chamou Das Ding: a elevação de um objeto à dignidade da
Coisa.
Lacan fala da obra de arte como um modo de organização em
torno de um vazio, em torno dessa coisa, dessa característica de
estranheza insuportável que o desejo guarda. Freud colocou como nota
de rodapé em seu texto sobre Leonardo essa descrição da Mona Lisa
pelo escritor italiano Angelo Conti. É interessante notar como essa
observação dá conta da natureza perversa do desejo humano, tão
bem retratada no quadro:
A dama sorria com régia tranqüilidade: seus instintos de conquista, de ferocidade, toda a hereditariedade da espécie, o desejo de seduzir e de fascinar, o encanto do artifício, a bondade que esconde o propósito cruel – tudo isso aparecia, desaparecia e voltava a aparecer, escondendo-se por trás do sorriso velado e mergulhando no poema de seu sorriso... Boa e má, cruel e piedosa, graciosa e felina, ela ria...
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